segunda-feira, 3 de julho de 2023

 




Quando criança, meu sonho era ser Policial Militar. Hoje, Policial Militar em Minas Gerais há 20 anos, estou aqui sentado na calçada da Companhia às 5 da manha, escrevendo esse desabafo e esperando alguém abrir pra eu pedir baixa. Não sei o que será de mim.

 

Na ponta do lápis, essa Profissão é uma inequação ofensiva, uma conta iníqua que não fecha, uma incongruência para o intelecto. E não adianta contestar com a barata psicologia reversa da “vocação”, que isso é falácia para controle psicológico de domínio e jugo, assim como o é dizer que professores não deveriam trabalhar pelo salário e sim pelo amor ao magistério. 


Filosoficamente, tais discursos são mecanismos de controle de grupos e indivíduos, afinal de contas, legisladores e governantes têm  vida de reis e deveriam ser os de maior desapego material em um Estado de misticismo vocacional. Mas não é apenas em razão do salário que a profissão Policial Militar em Minas Gerais é uma conta incongruente que não fecha.

Ser Policial Militar aqui é uma conta iníqua porque não há equidade entre encargo e recompensa, entre ônus e bônus, entre responsabilidade e poder, entre exigência e salário, entre risco e proteção jurídica. 


Exige-se do Policial Militar, por ocasião do processo de seleção, perfeição na saúde, no preparo físico, na capacidade intelectual e na sanidade mental. Em nenhum outro concurso no Brasil há tamanha exigência. Juízes, Promotores, Médicos - em nenhum outro concurso no Brasil exige-se tanto quanto nos concursos de Polícia Militar. Um osso emendado te elimina, um pé chato te elimina, um centímetro a menos te elimina, um dente torto te elimina, uma doença congênita te elimina, uma briga de trânsito te elimina, um dia a mais na idade te elimina... e não há nada de errado em tais exigências. Como disse, o problema é de inequação, sendo razoável que se exija tudo isso, já que, no exercício da função, o Policial Militar necessitará de tudo que dele se exige.


No cotidiano, o policial militar é a mão visível e concreta do Estado. O Policial Militar é o próprio estado materializado. É ele o rosto e a imagem ostensiva da entidade abstrata chamada Lei; ele é a mão do Rei, o verbo feito carne entre os governados, o elemento átomo da Norma, da Ordem e do Estado Democrático de Direito, e sem ele o verbo é só letra, a lei é só papel, governador é só título, toga é só pano, e a civilidade é apenas um conceito abstrato e vazio.


É ele a luz vermelha que dá paz na madrugada para dormir e segurança no dia para trabalhar; é ele o entremundos que permeia as bolhas desiguais da sociedade e acessa as realidades que o trono sequer desconfia que existe… é a boca que conscientiza e orienta, as mãos que contem, que detém, que protege e que pune… é ele o peito que para a bala.

Então é em razão dessa tamanha responsabilidade que surge a exigência que, de todos os indivíduos, selecione-se os de melhor capacidade física, intelectual e psicológica. Há de saber no dia a dia, tanto quanto, e ate mais, do que um juiz, posto ter de aplicar “in loco” e no flagrar dos fatos, leis como a 10.406\2002, o DL 2848\40, o DL 3689\41, a Lei 13.105\2015, o DL 3688\41, a Lei 9.503\97, a lei 11.340\2006, a lei 11.343\2006, a lei 13.869\2019, a lei 8.069\90, a lei 10.741\2003, a lei 7.716\1989, o DL 1001\69, o DL 1002\69, a lei 5.301\69, a Lei 14.310\2002, Tratados Internacionais de Direitos humanos e, sobretudo, na ponta da língua, a Constituição Federal.. 


há também de saber na prática defesa pessoal com aplicação de técnicas de jiu-jítsu, judô, boxer e muay thai; há de saber também gerenciamento de crise, a manter-se frio e racional em meio a distúrbios de massa, tentativas de suicídio, surtos psicoticos, sangue, esmagamentos, corpos putrefatos e morte.

É ele quem chega quando ainda há fogo, há tiro e há risco… e é dele que, no flagrar do sangue, da dor e da morte exige-se juridicamente a habilidade de processar conhecimentos de direito, física, psicologia e análise probalística para apertar o gatilho…


mas não são desarrazoadas tais exigências, afinal, como disse, a questão é de inequação - de descalibragem nos pratos da balança. 


O policial militar não pode fazer “bico”, não pode ter outra fonte de renda, pois a sua função é de dedicação exclusiva, não pode morar em qualquer lugar, frequentar qualquer lugar, falar o que pensa, vestir-se como quer, candidatar-se ou se alinhar politicamente - e nada disso é desarrazoado, mas é iníquo, é injusto e axiologicamente ilegal e imoral não calibrar a contrapartida, as condições para que realize sua função sem surtar e, fulminantemente, partir antes dos 50.

Perdi recentemente 4 dos meus melhores amigos, e não os perdi pela bala do inimigo, mas pela caneta envenenada do Rei, que, ora escrevendo e ora se omitindo, transfixou-os na mente e na alma, tornando-os alfozes de si mesmos. 


O Estado está matando seu próprios homens, e isso é um tabu que ninguém quer expor aqui dentro, afinal, como disse, não nos aplica o art 5 da CF, não sendo nós, Policiais Militares, sujeitos de direito à opinião e pensamento…

Semelhantemente ao episódio de Chaves, em que Dona Florinda manda que Quico saia à chuva mas não se molhe, o Estado se volta contra a própria força policial, sua mão, como se dela fosse inimigo,  impingindo-lhe a obrigação de agir e não agir ao mesmo tempo, tornando-a ré a responder imputação de maior gravidade em cada intervenção que realiza, invertendo hediondamente a presunção de verdade e de culpa, e pervertendo os princípios axiológicos do garantismo de Ferrajoli, que, indiscutivelmente, fundamentam-se em “la legge del piu debole”, para proteger o mais fraco e inocente do poder desproporcional do Estado, o que, no entanto, não justifica o tratamento desrespeitoso de presunção de mentira e abandono jurídico com que é tratado o Policial Militar. Ou, conforme as palavras do Rei, que se confessa assustado com o fato de se demitir mais Policiais em Minas do que demite ele próprio em suas empresas privadas.

A policia Militar é a única profissão a que hoje é inerente a contraofensiva jurídica, e, ironicamente, a que o Estado não garante assistência jurídica efetiva, sendo que, de 10 atuações policiais, 8 tem resultado em contrapocesso em desfavor dos militares- na maioria delas evidentemente sem justa causa, mas que impinge ao militar a preocupação com a defesa, com o gasto e com a repercussão disso no seu salário já defasado. 


Em conversa com colegas faca na caveira, fizemos um rápido levantamento e constatamos que, de 60 homens da nossa unidade, mais de 40 tomam algum tipo de antidepressivo, e que as mesmas ações que transtornos psicológicos e processos lhe renderam ombrearam nos oficiais superiores mais estrelas; que o numero de suicídios entre nós supera as mortes em confronto; que a expectativa de aposentar-se é muito pequena em razão do excesso de processo sem assistência jurídica de qualidade;

que há um abismo entre a remuneração final de oficiais e praças, criando-se um verdadeiro sistema de castas e apartheid social na tropa; que, enfim, ou a Polícia  Militar de Minas Gerais se reconstroi em defesa institucional dos seus ou será implodida, numa catastase de putrefação de dentro pra fora com a fuga de cérebros, suicídio dos caveiras e desalento dos peões!


Desculpem o desabafo sem roteiro e sem sintaxe, meus irmãos, afinal escrevo isso na sarjeta do abismo.

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