sexta-feira, 21 de abril de 2023

Além de Tiradentes: quem foi a mulher que ordenou levante armado em 1789


Além de Tiradentes: quem foi a mulher que ordenou levante armado em 1789

Hipólita Jacinta Teixeira de Melo em ilustração feita para edição do livro "Independência do Brasil - As mulheres que estavam lá" - Ilustração:Juliana Misumi/Divulgação/Bazar do Tempo
Hipólita Jacinta Teixeira de Melo em ilustração feita para edição do livro 'Independência do Brasil - As mulheres que estavam lá'Imagem: Ilustração:Juliana Misumi/Divulgação/Bazar do Tempo

De Ecoa, em São Paulo (SP)

21/04/2023 06h00

Em maio de 1789, partiu de uma mulher a ordem de iniciar uma resistência armada em Minas Gerais para defender os ideais da Conjuração Mineira.

Hipólita Jacinta Teixeira de Melo recebeu em sua fazenda a notícia da prisão de Tiradentes, ocorrida no Rio de Janeiro. Mandou avisar outros líderes e decidiu levar a revolta adiante, instruindo tropas a deflagrar a guerra em vários pontos da capitania.

O bilhete escrito por ela consta nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, processo instaurado pela Coroa portuguesa contra os conspiradores. A frase final demonstra seu destemor:

"Quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra".

Ela foi, até onde se sabe, a única mulher a ter participação ativa nos rumos da Inconfidênciaum movimento liderado pela elite com o objetivo de instaurar uma república independente em Minas Gerais. Apesar disso, foi esquecida pelos livros de história.

A personagem chamou atenção da historiadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais Heloísa Starling, referência nos estudos sobre o pensamento republicano no Brasil.

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A historiadora e professora da UFMG Heloisa Starling
Imagem: Rafael Motta/UFMG

Ela então foi levantar informações e formular hipóteses sobre a vida da inconfidente, e contou sua história no livro "Independência no Brasil - as mulheres que estavam lá", publicado em 2022 pela editora Bazar do Tempo.

Fazenda de Hipólita era 'QG' inconfidente

Hipólita pertencia a uma das três famílias mais ricas da comarca de Rio das Mortes - onde hoje ficam as cidades São João del-Rei e Tiradentes.

O bem mais valioso de seu patrimônio era a fazenda Ponta do Morro, que tinha uma localização estratégica: ficava próxima à principal rota de trânsito da região, o Caminho Novo, que ligava Minas ao porto do Rio de Janeiro.

Com isso, a fazenda se tornou um ponto de encontro para a elite econômica e intelectual da comarca no fim do século 18.

Os serões, reuniões noturnas em que grupos de homens normalmente se encontravam para conversar e jogar, aconteciam com frequência na propriedade. No fim da década de 1780, a elite estava insatisfeita com a crise da mineração e os impostos da Coroa e a política tomou conta desses encontros.

Ali, entre partidas de gamão - jogo de tabuleiro em que, conta-se, Hipólita se saía muito bem -, música e outros divertimentos, os frequentadores começaram a questionar, inspirados pela independência dos Estados Unidos em 1776, se as Minas poderiam viver sem a metrópole.

Em uma época em que as mulheres estavam confinadas no ambiente doméstico, Heloisa Starling chama atenção para o fato de Hipólita estar interessada nessas questões. "[Segundo a época] ela não tinha sequer que participar das reuniões com os homens, muito menos debater e assumir liderança. A Hipólita fez isso tudo. Ela é uma personagem completamente fora do padrão", diz Heloisa Ecoa. "A fronteira mais difícil para a mulher atravessar até hoje é a política, é a mulher assumir voz pública. Imagina como era 200 anos atrás".

'Completamente fora do padrão'

Segundo Starling, uma prova do envolvimento político de Hipólita é que ela foi a única mulher a sofrer uma pena pelo crime de inconfidência: sendo mulher, não foi presa, mas perdeu todos os bens.

"Tinha uma história a ser contada aí", diz a historiadora. Mas a pesquisa não foi nada fácil: quase nada sobrou de Hipólita, houve um apagamento. Restam muito poucos documentos e só ruínas da fazenda Ponta do Morro.

Mesmo assim, a professora foi em frente, recorrendo a fontes indiretas. "Transitar entre realidade e possibilidade é uma opção quando se trata de enfrentar o mutismo que costuma recair sobre mulheres" na história, escreve no livro.

Sobre a biografia de Hipólita, o que se sabe é que ela nasceu em Prados, provavelmente em 1748. Recebeu uma educação diferente da que normalmente era dada às filhas da elite colonial, que aprendiam apenas a costurar, bordar, fazer rendas, rezar e tocar piano. Teve bons professores, contratados no Rio de Janeiro, escrevia e lia em português e francês.

Ao que tudo indica, se casou em 1781 - aos 33, tarde para os parâmetros da época - com Francisco Antônio de Oliveira Lopes, que também se envolveu de corpo e alma na conjuração.Outra peculiaridade de Hipólita em relação às mulheres de seu tempo é que desde sempre tinha o costume de andar sozinha, a cavalo ou a pé, pela fazenda e seus arredores. Consta que era uma boa amazona.

Mas, num aspecto, sua mentalidade parece ter estado de acordo com a de uma mulher da elite das Minas no século 18. Proprietários de escravizados, os inconfidentes não formularam uma crítica à exploração da mão de obra indígena e africana.

"Faltou à conjuração mineira o debate abolicionista. Não temos nenhuma indicação, nem indireta, de que ela tenha formulado alguma ideia a esse respeito", afirma Starling.

Amante da natureza, deu livro a Tiradentes

2 - Tiradentes / José Wasth Rodrigues - Tiradentes / José Wasth Rodrigues
Tiradentes imberbe, como alferes, em pintura de José Wasth Rodrigues
Imagem: Tiradentes / José Wasth Rodrigues

Na ordem de Hipólita para iniciar um levante armado pela Inconfidência, ficam evidentes duas coisas: sua autoridade e protagonismo dentro do movimento. A primeira porque foi obedecida e a segunda porque mostra que conhecia todo o planejamento militar dos inconfidentes.

Starling também comenta a ligação pessoal da inconfidente com um dos personagens mais lembrados da rebelião, Tiradentes. Ele ia com frequência à fazenda Ponta do Morro e teria recebido de Hipólita uma versão traduzida do livro que reunia documentos da Revolução Americana, considerado a "Bíblia" dos inconfidentes e influência importante para o alferes.

Além disso, tinham um interesse comum: a botânica. Hipólita tinha o costume de entrar na mata atrás de espécies de plantas que trazia para cultivar no jardim, no pomar e na horta da fazenda. É possível que conversassem sobre isso.

A conjuração foi derrotada, mas a pena aplicada pelo então governador Visconde de Barbacena não foi capaz de domar Hipólita. Por uma década, ela seguiu enfrentando com engenhosidade a Coroa para reaver seu patrimônio, que conseguiu recuperar. Manteve também em torno de si uma rede de familiares e amigos que a ajudaram nisso.

"Isso é importante para as pessoas não se sentirem sozinhas e para as ideias políticas não desaparecerem", diz a professora da UFMG.

Para ela, resgatar a figura de Hipólita ajuda a elaborar no presente discussões sobre liberdade, soberania, a importância da república e de se inteirar dos assuntos que dizem respeito a todos para construir o bem comum.

"É muito bom conhecer uma mulher tão valente, capaz de romper com tantos limites para poder pensar com a própria cabeça. Isso é muito forte ainda hoje. E o recado de 'quem não tem competência para as coisas, que não se meta nelas', ainda serve, não é?".

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