segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Hierarquia, disciplina e desordem remuneratória. Os militares iguais que recebem salários diferentes

 


Hierarquia, disciplina e desordem remuneratória. Os militares iguais que recebem salários diferentes

A Lei 13.954 criou desigualdade salarial entre militares iguais. Veja como a reforma militar gerou uma casta invisível, afetando 30 mil inativos.

por JB Reis

Publicado em 21/12/2025

Hierarquia e disciplina na vida militar não são apenas peças-chave de coesão da tropa. Elas também regem regras de convivência que se estendem além do serviço ativo. Militares de mesmo posto ou graduação sempre foram iguais também na remuneração: um capitão não recebia mais que outro capitão, assim como um sargento não recebia mais que outro sargento. Essa lógica sustentava a hierarquia, a disciplina e a ordem, inclusive na reserva remunerada. Esse equilíbrio, porém, foi profundamente alterado.

A Lei nº 13.954, de 16 de dezembro de 2019, assinada pelo então presidente Jair M. Bolsonaro, prometeu modernizar as carreiras militares das Forças Armadas, com foco especial na Força Aérea Brasileira e na Marinha do Brasil. A reestruturação, inicialmente apresentada como um avanço inédito na valorização profissional, revelou-se um foco de desordem estrutural.

As fissuras da Lei 13.954 vistas em perspectiva

Ao longo dos últimos cinco anos, a Revista Sociedade Militar documentou de forma sistemática as fissuras provocadas pela lei. Reportagens mostraram como a própria ferramenta de inteligência artificial da FAB reconheceu a desigualdade salarial entre ativos e inativos, admitindo que mudanças na norma criaram lacunas que atingiram diretamente os reservistas.

Essa constatação expôs a fragilidade da lei ao ignorar a continuidade da carreira militar. Ativa ou reserva, o serviço prestado é uno.

Inteligência artificial expõe discriminação salarial camuflada

O que começou como uma reforma para equiparar competências resultou, paradoxalmente, em quebra de equidade e abalo nas bases financeiras da hierarquia militar. Suboficiais na ativa passaram a receber adicionais por cursos de altos estudos, em torno de R$ 2 mil mensais, enquanto milhares de militares na reserva, transferidos para a inatividade antes da vigência da lei, ficaram excluídos.

Criou-se uma lacuna salarial que feriu os princípios de hierarquia e isonomia. Militares iguais passaram a receber remunerações diferentes. Na prática, a Lei nº 13.954 estabeleceu um degrau hierárquico artificial, de natureza financeira, entre sargentos e suboficiais beneficiados pelos cursos de altos estudos.

O paradoxo da modernização: a reforma que criou uma casta financeira

Promulgada em meio a negociações com o Congresso Nacional, a Lei nº 13.954 alterou o Estatuto dos Militares e instituiu o Adicional de Habilitação, vinculado a cursos de formação avançada. Para suboficiais da FAB e da Marinha, passaram a existir dois círculos distintos.

O primeiro reúne militares da ativa a partir de 2019, que tiveram acesso aos cursos e incorporaram adicionais progressivos entre 20% e 73% sobre o soldo. O segundo engloba suboficiais já na reserva, especialmente os transferidos para a inatividade entre 2001 e 2019, período em que tais cursos não existiam.

Mesmo com patentes equivalentes e décadas de serviço, esses militares não tiveram direito à retroatividade do benefício.

Dois círculos: privilégio para ativos, exclusão para inativos

Portarias normativas da FAB listam cursos qualificadores, como o Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos, mas excluem explicitamente os inativos da majoração remuneratória. Essa divisão artificial fere o princípio constitucional da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição Federal.

A implementação acelerada da lei, sem estudos atuariais aprofundados, foi alvo de críticas internas no próprio Ministério da Defesa. Documento reservado, posteriormente revelado, alertava para riscos de judicialização e para a “urgência irresponsável” da tramitação.

Violação constitucional: documentos da FAB excluem inativos

A disparidade é expressiva. Um suboficial na ativa pode acumular Adicional de Disponibilidade, Adicional Específico e Adicional de Altos Estudos, elevando a remuneração líquida em até 40% em relação a militares da reserva com a mesma graduação.

Para os reservistas da chamada lacuna temporal (2001–2019), o soldo permanece congelado, sem reajustes proporcionais, afetando proventos e pensões. Estima-se que mais de 30 mil suboficiais da FAB e da Marinha estejam submetidos a essa exclusão.

Além do impacto financeiro, há forte reflexo psicológico. Militares da reserva relatam sentimento de traição institucional, enquanto a expressão “militares iguais, salários diferentes” se espalha por associações de classe e redes sociais.

STF acumula ações sobre a Lei 13.954, mas desigualdade persiste

As controvérsias chegaram rapidamente ao Judiciário. O Supremo Tribunal Federal acumula mais de mil ações relacionadas à Lei nº 13.954, questionando a negativa de adicionais a militares inativos. Acórdãos do Tribunal de Contas da União analisam os custos bilionários da reforma, sem resolver a questão da isonomia.

Advogados especializados sustentam a inconstitucionalidade da norma, citando precedentes do STF e a violação da paridade entre ativos e inativos prevista na Emenda Constitucional nº 103/2019. Enquanto militares da ativa celebram reajustes recentes, reservistas permanecem com proventos estagnados.

A erosão da hierarquia pelo avesso do contracheque

A essência das Forças Armadas está na hierarquia e na disciplina. Salários desiguais, contudo, corroem esses pilares por dentro. Suboficiais da reserva, com a carreira encerrada, mas a lealdade intacta, questionam por que o mérito de ontem passou a valer menos que o de hoje.

A Revista Sociedade Militar alerta que essa fissura tende a minar o moral da tropa, especialmente em um cenário geopolítico sensível, no qual o Brasil se insere em disputas estratégicas globais.

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